*Pausa pra um conto que escrevi pra uma das aulas da faculdade*
Não sei muito bem por onde começar. Aliás, nem sei se devo começar alguma coisa a essa altura da vida… Primeiro vou acender um cigarro, para tentar encontrar a ponta desse fio de Ariadne todo emaranhado bem aqui, dentro da minha cabeça. Eu podia mesmo era ser Raimundo. Aquele de Drummond… Não, não! Esse já existe nesta história...
Raimundo e Angelina, os pais daquela que convencionalmente
chamo de mãe, tiveram uma única filha, Maria José - que não é minha mãe - e
perceberam que educar meninas era bom, por isso, criaram também Maria Angélica,
Maria Rosemeire - a minha mãe -, Maria Esther e Maria Solange - só para
continuarem desfrutando das coisas boas que vinham junto com o fato de criar
alguém. Sim, são todas Marias. Ideia fixa de vô, Raimundo, homem muito
religioso e crente nas causas do “oculto”, do destino.
As Marias cresceram e havia chegado a hora de dar
continuidade aos determinismos da natureza: o momento de procriar. Gosto do
verbo procriar. Ela é formada pelo prefixo latino PRO, que significa “a favor
de” e do verbo CREARE, que indica “produzir”. E, no fundo, é isto, os filhos,
meu pais sempre diziam, são criados para mudar o mundo. E foi assim que,
casamento após casamento, Maria José, Maria Angélica, Maria Esther e até Maria
Solange, minha tia mais nova (que havia engravidado aos 15 e adiantado o
processo), deixaram a casa dos meus avós e tiveram cada uma a sua parte na
criação de novos seres para agirem em prol da mudança deste mundo.
Peraí, preciso de uma água mineral com gás para continuar com
essa história. Talvez mais um cigarro também. Talvez um pouco de café… Na
cozinha eu decido se tudo ou nada disso.
Vamos lá! A grande ficha dos meus avós só caiu no momento em
que limpavam a casa após a festa do último casamento. Eles perceberam que somente
quatro deles haviam acontecido e que Maria Rosemeire, a filha do meio e minha
mãe, ainda estava solteira e corria um sério risco de ficar “para titia”. Seria
uma frustração para eles. Filhos são feitos para mudar o mundo e ninguém muda o
mundo enfurnado dentro de casa!
Não muito longe dali, Herval e Lucilene - meus avós paternos
- discutiam o destino de seu filho
único, Osmar José Comparatto, que já passava dos trinta e ainda não havia escolhido uma boa mulher para se
casar e desfrutar das posses da família . Apesar disso, meus avós aguardavam
com certa ansiedade o momento em que descobririam algum neto perdido, fruto de
uma das muitas aventuras de meu pai.
Foi nesse contexto
(de quatro pais desesperados para arranjar um casamento) que minha mãe - Rose -
e meu pai - Osmar - se conheceram. Não
foi amor à primeira vista. Nem poderia ser. Eram muito diferentes! Mas lá pela
terceira dança, depois de muita conversa desconexa e algumas doses de martini, já se podia afirmar que, embora céus e terras
não tivessem se misturado, era muito provável que a esperança de ter netos
voltaria a se estampar na face de meus avós. Peraí, vou tomar logo todo este
café antes que ele esfrie mais. Não encontro o isqueiro. O cigarro vai ter que
esperar… Parece que estou próximo da ponta do fio de Ariadne.
O casamento de meus pais aconteceu menos de um ano depois do
primeiro encontro. Meu avô, o Raimundo, vibrou de felicidade. Sua missão estava
quase concluída. Ele gostava de dizer que cada um é para aquilo que nasce e
acreditava que sua missão neste mundo era criar meninas que pudessem
transformar o mundo. Mas, apesar de toda a sua crença na mão providencial do
destino, o que incomodava mesmo o meu velho avô era o fato de que os netos –
tão esperados – ainda não haviam chegado, não os da filha tardiamente casada.
No quarto aniversário de casamento, então, meus pais decidiram viajar para uma cidade
litorânea, numa espécie de segunda lua de mel, mas os mosquitos, o calor, o
fato de que a porção de camarão custava muito mais caro lá do que na cidade em
que viviam e o mau humor que resultava
dessa combinação fizeram com que eles voltassem muito antes do esperado.
Encontrei o isqueiro. Ah, a nicotina me faz tão bem! Só mais
uma longa e revigorante tragada para realinhar as ideias. Essa situação me faz
pensar que os encontros e desencontros
da vida não passam de brincadeiras do destino. Explico. A minha sorte neste momento, ao encontrar o
isqueiro, coincide, nesta história que conto, com o momento em que passo a
fazer parte da história da família
Comparatto. A minha família!
Enquanto meu pai pagava o táxi que os havia levado de volta
para casa, minha mãe, que estava muito indisposta, apressou-se para a parte dos
fundos da casa, onde havia o único banheiro destrancado e pronto para o uso,
mas ela mal havia se sentado no vaso sanitário, quando ouviu a risada de uma
criança - no caso, eu -, vindo da área da piscina. Ah, deve ser algum dos
filhos da empregada! Eu vivo dizendo que eles não podem usar a piscina, mas ela
aproveitou que não estávamos e deixou a criançada sujar a nossa água! Pois bem!
Vou pegá-los no pulo e demiti-la por justa causa!
No entanto, o que ela viu ao se encaminhar para a piscina
era mais surpreendente do que esperava - mas igualmente irritante: EU! Uma criança
por volta de cinco anos e totalmente suja de terra (que ela deduziu,
corretamente, se tratar da terra de seu jardim). Fiquei assustado com a expressão de fúria
estampada no rosto daquela mulher desconhecida e, sem pensar duas vezes, me
joguei na piscina. Que delícia e que medo! Excitante!
Demorei-me no fundo da piscina. Não sabia o que poderia
acontecer na volta à superfície. Fechei os olhos. Lá fora, à beira da piscina,
a desconhecida gritava desesperadamente, até
ensaiava um salto na água, quando
viu que o marido, vindo do outro lado do quintal, havia se adiantado e feito
isso primeiro. Ao sentir o movimento na água, tratei de abrir os olhos e fugir
o mais rápido que pude. Mãos, pernas e braços batendo num ritmo alucinante. Saí
da água e me sentei com as perninhas na beirada da piscina e comecei a rir, de
nervoso, talvez.
Ao se darem conta de toda situação, aqueles, até então
desconhecidos, compartilharam do meu riso. Nossa cumplicidade nasceu ali. Cada
um é para aquilo que nasce, afinal. O silêncio que surgiu após as risadas só
foi quebrado quando os dois perceberam que eu não era filho de nenhum empregado
da casa, nem se parecia com nenhum dos vizinhos. Eu era um menininho branco,
gorducho, com grandes olhos esverdeados (os quais minha mãe sempre achou que se
pareciam muito com os do meu pai quando jovem). Lembro-me exatamente das
primeiras palavras que me disseram naquela noite.
_Cadê sua mãe?
_ Eduardo é o guardião de riquezas - respondi, ignorando a
pergunta do homem com cara de poucos amigos.
_O quê?
_Meu nome é Eduardo - insisti - Eu tava com calor. Ainda
tô…- e me joguei de novo na piscina.
O casal de desconhecidos apenas se olhou dessa vez. Eles
viram em mim algo de especial e era óbvio que nenhum dos dois fazia a menor
ideia de quem eu era, nem de onde havia surgido.
Fizeram uma busca rápida pela região, anunciaram no jornal
que uma criança havia sido encontrada e estava com eles, mas, após algumas
semanas sem resposta, fizeram o que já parecia natural desde o momento em que
haviam me encontrado rindo na beirada da piscina: deram entrada no processo de
adoção (e demitiram todos os empregados, óbvio. Onde já se viu deixar um
estranho entrar na casa? E se fosse um bandido?).
Daquele dia em diante, passei a ser mimado e tratado por meus pais como o
salvador do mundo. Primeiro o deles e, depois, o de todos os outros. Mas, assim
como o Cristo, o que eu fiz da infância e adolescência é problema único e
exclusivo meu. Se fazem questão, dou dicas: sol, praia, bons amigos e a
sensação maravilhosa de que o mundo pertencia somente a mim.
Vamos ao que me trouxe aqui… Vou até abrir a janela para que
o cheiro de cigarro saia e as ideias entrem.
Alguns episódios desordenados da minha vida acadêmica me vêm
à mente neste momento. Meus pais sempre me consideram brilhante e foi na
faculdade que eu tive certeza de que eles estavam certos. Nunca me destaquei
mais do que nas assembleias e reuniões do curso! Meus discursos eram repetidos,
meu nome bradado em todos as aulas, minhas ideias se espalhavam numa velocidade
impressionante a ponto de meus
professores se sentirem intimidados apenas com a minha presença. E foi assim
que me formei: Rápido, para que minhas ideias não contaminassem os demais
companheiros de curso e a hierarquia pudesse ser mantida. Naquela época,
sentia-me quase como um jovem judeu sendo caçado pelos soldados romanos. Ainda
bem que os tempos eram outros, senão não estaria aqui fumando mais um cigarro e
contando esta história…
O interfone está tocando. Um segundo, devem ser as
correspondências do dia. Pronto. Contas, propaganda e toda sorte de besteira
que se recebe pelo correio hoje em dia. O que foi feito do hábito de mandar
cartas? Enfim… Divagações… Acho que a única coisa interessante é um pacote que
se parece com um livro. Depois eu vejo. Tenho coisas mais importantes para
fazer agora: contar esta história. Mas, preciso de outro cigarro, pois este
episódio é bastante tenso!
Venho percebendo que estou ficando dessaturado! Isso mesmo!
Não é saturado no sentido de estar de saco cheio, nesse caso, o contrário
disso. Estou perdendo a cor. Talvez seja mais uma particularidade de minha
singular personalidade. Talvez seja o caso de me estudar. Conhece-te a ti mesmo
que eu me conheço bem. Certa feita, a propósito, vi um estudante usando uma camiseta com essa frase minha
estampada. Fiquei sutilmente feliz. Estava alcançando um público cada vez
maior, mais eclético! Lembrando agora, foi neste dia que percebi a primeira
mudança na minha tonalização. Achei que fosse falta de sol e fui para a casa
dos meus pais para me bronzear na beirada da piscina, mas o risco de câncer de
pele aumentava e minha tonalização não melhorou, mas como mamãe disse que eu estava
parecido com William Holden em seu ápice, aceitei confusamente o elogio, voltei
para casa e, desde então, venho tentando entender o que está acontecendo
comigo. Já estou um tanto cansado. Pausa para um novo café, um novo cigarro e
para as futilidades que me chegaram pelo correio.
Muitos papéis para o lixo: Não estou interessado em
depilação a laser, iogurte emagrecedor, promoção de petshop. Mas, espera, o
livro parece interessante, pelo menos o título: “Os 50 maiores pensadores e seu
legado para a humanidade”. Poderia ser um presente de meu avô, Raimundo! Mas o
remetente era desconhecido. Vamos lá! Vamos ver do que se trata. Devo estar
citado, certamente!
Abri aleatoriamente o livro e me deparei com a seguinte
frase, equivocadamente atribuída ao poeta - menor - Fernando Pessoa: “Tenho em
mim todos os sonhos do mundo.” . Hahaha! Que falácia! Lembro-me exatamente do
momento em que disse essa frase, em um seminário da faculdade.Vou ter que fazer
um adendo ao editor! Um absurdo!
Prossigo a leitura e tento outra página aleatória. Voilà!
Outra frase minha atribuída a um ilustre desconhecido: “Não tenho tempo pra
mais nada, ser feliz me consome muito.” Quem é essa tal de Clarice Lispector?
Por que bebe de minha fonte e não atribui a mim os devidos créditos? Usurpadora!
Há algo muito errado acontecendo! Percebo que o mundo está ao contrário e
ninguém reparou! Tenho andado distraído, impaciente, indeciso e dessaturado,
mas mesmo assim não é motivo para que TODAS as frases deste livro estejam
citadas erroneamente. EU disse todas! EU fiz essas frases se tornarem famosas!
Foram a MINHA inteligência e MINHA educação refinada que fizeram com que essas
frases ganhassem o mundo. Blasfêmia! Erro! Infâmia! Calúnia! Plágio! Alguém
terá que pagar por isso… Vou buscar referências no Google!
Há algo errado! É uma conspiração! Meu nome sequer aparece
nas buscas. É como se eu não existisse, como se minha vida inteira não tivesse
acontecido… O que há de errado com o mundo? De repente me sinto estranho, como
se o errado fosse eu! É como se eu fosse um fade out da vida real, minha
importância nesse mundo fosse sendo diminuída a cada frase minha que não
encontro citada corretamente. Preciso de um cigarro. Ou… Será que eu as disse?
Não… Preciso MUITO de mais um cigarro. Preciso de um maço inteiro. Se essa
dúvida não me matar, o câncer o fará! Páginas e páginas de falácias…
Inacreditável! Como alguém publicou isso sem fazer o mínimo de pesquisa antes?
Ratos! Vocês não entrarão nos meus sapatos! Eu sou um cidadão civilizado.
Resolverei isso racionalmente.
Volto ao livro. Mais um cigarro. Jogo uma água na cara e
percebo que estou cada vez mais cinza. Deve ser efeito dessa maldita fumaça.
Olho ao redor e os olhos de Martin Luther King, Gandhi, Steve Jobs. Madre
Teresa e Getúlio Vargas condenam-me.
Dizem-me que não sou nada, nunca serei nada, não posso querer ser nada. Tenho
sido muita coisa a vida toda. Ou será que não? Solto a fumaça do cigarro pelo
nariz. Olho minhas mãos. Estou cinza. A cor saiu de meu corpo e deixa minha
alma numa velocidade impressionante. Minha mão e a fumaça já não se distinguem,
mas consigo perceber que meu bloco de notas e minha caneta estão por perto.
Dirijo-me até eles. Preciso deixar um legado original no mundo já que tudo o
que eu vivi até hoje foi esquecido pela história. Sem mais cigarros! Sem mais
café! E sem mais qualquer esperança de salvar outra coisa que não seja eu
mesmo.... Eis aqui as derradeiras palavras originais de minha existência: Tenho
em mim todos os sonhos do mundo.
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