Sobre se achar perdido


_Te pego na escola e encho a tua bola com todo meu amor...

Assim que estamos suficientemente afastados do portão da escola eu começo a cantar baixinho, ao lado dele, enquanto caminhamos. A reação é quase instantânea: Ele guarda o celular onde esteve mexendo nos último minutos e olha para mim, sem parar de andar.

Ele odeia Cazuza e odeia mais ainda que eu cante (e eu não posso culpá-lo por essa última: sou muito ruim até cantando baixinho do jeito que estou).

_Nossa... Pode parar...

Eu dou uma risadinha de leve e olho pra ele - que só balança a cabeça ao meu lado sem parar de andar.

_Desculpa... Foi irresistível. Esse cenário todo, sabe? Você saindo do caminho normal e vindo me buscar na porta da escola...

_Eu não gosto de Cazuza e... Eu não vim te pegar na escola, sabe? Não é como se você fosse uma colegial safadinha que eu estivesse tentando seduzir e, pra isso, eu tivesse que vir pegar no portão da escola depois de duas aulas de física e uma de matemática. Você trabalha aqui.

_Exatamente! - eu aperto o braço dele - Eu trabalho numa escola, sabe? Não sei se deu pra notar com esse tanto de adolescente vestindo uniforme, o sinal tocando na saída e todo resto...

_É, mas não estuda!  A música não serve.

_Acho que a música não deixa claro se é sobre uma estudante. Pode ser uma professora também. O Cazuza já morreu, não tem como a gente perguntar...

_Não inventa...

Eu dou outro sorriso enquanto continuamos andando. Ele apenas franze a testa, um pouco irritado. Gosto quando ele se irrita com essas coisinhas bobas. Não é uma irritação real, de verdade: É mais uma reação dele às minhas ideias aleatórias. Nós sempre temos dessas. Reajo exatamente igual quando é ele que começa algum papo sem pé nem cabeça.


_Hoje estou legal e, embora saiba que a minha vitória nessa discussão saudável seria óbvia, vou considerar um empate e parar por aqui... - ele diz, segurando minha mão enquanto caminhamos mais um pouco.

_O importante é que consegui um ponto fora de casa. E que nunca perco. Lembre-se disso, meu bem: Eu nunca perco.

_É, é... Pode ser.

Ele segura a minha mão com mais força. Não fala mais nada.

_Confundo as tuas coxas com as de outra moça... Mas tá tudo bem se você fizer isso,  amor, sério mesmo... Porque coxa é um negócio que é meio igual...

Ele bufa, solta minha mão e passa o braço pelos meus ombros.

_Não basta cantar... Você também vai analisar a música?

_Ah, não tenho nada melhor pra fazer...

Ele dá de ombros.

_Não dá pra confundir tuas coxas, sabe?

_É claro que sim! Coxa é um negócio que é meio igual. Agrupar umas do mesmo tom de pele que a minha e estarei perdida num mundo de coxas pra sempre... Já pensou? Coxonas, coxinhas, coxas normais... Brancas, pretas, amarelas... E minhas coxas lá no meio. Pobre de mim.

Um sorriso de lado. Ele me olha de um jeito engraçado e dá uma daquelas risadinhas meio debochadas que normalmente são seguidas por um comentário feito especialmente pra me irritar.

_Eu tenho uma tática perfeita pra não confundir tuas coxas com as de outras moças. É só botar suas pernas no meio de outras pernas... E eu dizer alguma coisa... Qualquer coisa. Alguma coisa boba, quanto mais boba melhor. As pernas que descruzarem são as tuas. Fácil de reconhecer. Você sempre abre as pernas pra mim e desse jeito eu não te perco nunca.

Eu rio com gosto e ele me abraça.

_Que comentário cretino!

_Não tenho culpa se é só eu aparecer que você se derrete toda...

_Convencido.

E então é a vez dele dar uma risada cheia e então eu sei que perdi. 
De novo.
Porque ele só ri assim quando tem aquele tipo de comentário, o que vai me derrubar e me fazer realmente derreter. O tipo de coisa boba que ele poderia dizer e eu realmente abriria tudo para ele: A porta da minha casa, minhas pernas e até meu coração. É sempre assim. Todas as nossas conversas seguem mais ou menos esse roteiro.

Ele me solta e olha nos meus olhos ainda exibindo um sorriso divertido.

_Acho que eu não quero mais o empate. Quero a vitória total. Você pediu por isso com esse comentário sobre as coxas. Tá preparada?

_É, vamos lá... - eu dou de ombros fingindo resignação.

Quem olhasse pra gente no meio da rua naquele momento - eu sou quase uma cabeça mais baixa do que ele e está com as duas mãos nos meus ombros, me olhando sério enquanto eu ostento uma expressão expressão risonha - não devevia estar entendendo nada.

Mas a gente entende. E é isso que importa.

E ele pigarreia e canta baixinho, bem desafinado, no meu ouvido "Faaaaaz parte do meu show, meu amor..." e me dá um beijo de leve no rosto, dá uma piscadinha e vira pra frente como se nada tivesse acontecido.

E então eu concluo pela milésima vez que eu não apenas perdi, mas  que já estou completamente perdida.

Perdidamente apaixonada.


"Vivo num 'clip' sem nexo
Um pierrot retrocesso

meio bossa nova e 'rock'n roll'"

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