PARTE I
14
de fevereiro
“Hannah,
Há tanto que eu preciso falar, tanto que eu
deveria dizer – tanto que eu deveria ter dito antes e, no entanto, agora não há
mais tempo. Dedico meus últimos instantes de vida a você, a única mulher que
verdadeiramente amei. Peço perdão se eu nunca disse. Faltou-me coragem.
Enquanto escrevo essas palavras está
chovendo e ventando.
Lembro-me do dia em que nós dois nos
conhecemos. Estávamos próximos do mar e a chuva nos pegou de repente, de surpresa.
Espero que essas palavras tenham o mesmo
efeito em você do que aquela chuva.
Não sei se já lhe disse Hannah, e isso
realmente não importa agora, mas você transformou minha vida. Você iluminou o
meu lado escuro e fez de mim uma pessoa melhor ao me dedicar a sua amizade.
Porém eu cheguei nesse momento em que somente a sua amizade não é suficiente e
tudo o que você dá não me satisfaz.
Agora que eu já tomei minha decisão a
verdade sairá de mim com a força que eu nunca tive antes: Eu a amo! Eu a amo
mais do que já amei qualquer pessoa nessa vida e a certeza cruel de que jamais
poderemos viver algo além da amizade me transformou num homem louco.
Há anos, desde a tarde chuvosa em que nos
conhecemos, nos tornamos amigos demais para que nos apaixonássemos um pelo
outro, e no entanto isso aconteceu. Não pude evitar, Hannah, e minha incrível
falta de controle sobre meus sentimentos me deprime, e me fez pensar em acabar
com esse sofrimento. Afastei-me de ti na esperança de que se não a visse, meu
amor acabaria. Não deu certo.
Estou me tornando repetitivo e deixando de
fazer sentido. É preciso terminar logo.
Não posso desistir agora. Peço-te um último
favor, minha amiga: Quando fores ao meu sepultamento, leve contigo uma rosa
vermelha: Beije-a, e jogue sobre meu caixão... Eu não recebi nenhum beijo teu
em toda minha vida... Embora não exista nada no mundo que eu não daria para
beijar teus lábios, acariciar teus cabelos e te abraçar. Não há mais tempo, no
entanto. Atenda meu pedido, Hannah, e serei finalmente feliz. Adeus... Adeus...
Nos veremos em outra vida e espero ter mais coragem nela do que nessa.
Bernard”
Noite alta, frio intenso. A casa tinha
as luzes apagadas quando ela desceu do carro e nem o vento ousava soprar.
Estava em silêncio e no escuro completo mas, às vezes, o silêncio produz um
barulho ensurdecedor.
Abriu a porta e acendeu a luz. Ela
pode ouvir um suspiro vindo do porão. Sentiu o sopro da morte e teve certeza de
uma coisa: Ele já não estava mais lá.
PARTE II
21
de agosto
Ele se matou por minha causa.
Ele se matou porque não tive
coragem suficiente para revelar o que se passava no meu coração. Ninguém jamais
saberá como me sinto. Não há alma mais infeliz nesse mundo que eu.
26
de agosto
As coisas estão estranhas.
Não consigo mais conversar com as
pessoas como eu fazia antigamente. Tudo me parece sem graça e meu peito se
aperta diante da menor demonstração de alegria alheia. Nunca poderei ser feliz
de novo. Todos me tratam com pena.
Há cinco dias não como direito e
nem consigo dormir. Fico pensando que deixei minha última possibilidade de
felicidade escapar por entre meus dedos.
Aquelas últimas imagens, o corpo
inerte de meu melhor amigo, minha eterna paixão não realizada, povoam minha
imaginação. Preciso me esquecer isso, todos me dizem que a culpa não foi minha,
mas eles não sabem o que se passa em meu coração – e nunca saberão. Como é
possível?
31
de agosto
Por que ele fez isso comigo? Por
que ele tinha que ser assim? Meu amigo... O melhor amigo que tive em toda minha
vida! Ele conseguiu... Ele conseguiu me fazer sentir culpa.
1
de setembro
Vi um anúncio “Vidente desvenda
passado e presente e anuncia o futuro” e decidi tentar a sorte.
A casa era em um beco: Um quartinho
apinhado de incensos e velas aromáticas, cheiro que estava me deixando com
náuseas. Uma mulher magra, com olhos grandes e pintados de aproximadamente cinquenta
anos apareceu na porta e ordenou que eu me sentasse, me olhando atentamente por
alguns minutos que, para mim, pareceram eternos. Depois fechou os olhos e
respirou profundamente antes de falar “Você se pergunta por que ele fez isso,
mas você sabe o porquê. Você foi a única culpada. Você o matou com a pior das
armas... Você o matou de amor!”
Ter ido até lá havia sido um erro.
Eu procurava redenção e acabei tendo a confirmação de que todos os meus pecados
eram reais e continuariam comigo pela eternidade. Levantei-me bruscamente e fui
até à saída mas, antes que eu pudesse deixar aquele ambiente, ela segurou o meu
braço e sorriu – um sorriso branco e com todos os dentes – antes de dizer quase
num sussurro “Você fez a sua própria ruína ao negar o último pedido dele”.
Foi a gota d´água e eu abri a porta
e saí correndo. Em sua carta de despedida Bernard havia me pedido para beijar
uma rosa vermelha e depositá-la em seu túmulo... Mas eu estava abalada demais
para comparecer ao funeral e nunca fui capaz de cumprir o último desejo do meu
amor.
Como aquela mulher podia saber do
pedido de Bernard? Eu nunca havia contado a ninguém sobre aquilo?
2
de setembro
Pesadelos terríveis me atormentam.
Ele... Aquela corda... Aquele último barulho feito apenas para meus ouvidos...
A imagem que eu fazia de como Bernard deveria ter estado no caixão, coberto de
flores brancas e sem nenhuma rosa vermelha... Em meus sonhos Bernard, o cadáver
de Bernard com a marca roxa da corda em seu pescoço, se aproxima de mim
exigindo um beijo que eu nunca dei. Todas as noites acordo suando frio antes de
beijá-lo e não encontro alívio.
Bernard se foi porque eu não fui
corajosa o suficiente para dizer que eu também o amava. E agora ele cobra o beijo
de rosa que eu neguei.
4
de setembro
As pessoas me condenam e seus
olhares me aterrorizam. Meus amigos me rejeitam: Mesmo que eles não digam posso
escutar o sussurro “Assassina! Assassina!”.
Eu o matei, todos sabem disso e
agora não tenho mais salvação.
5
de setembro
Não converso com ninguém. Todos
estão me acusando. Vejo fantasmas por todos os lados e Bernard vem me visitar
quando estou acordada – já que não consigo mais dormir.
Nada mais faz sentido.
Releio a carta milhões de vezes todos
os dias e minha única certeza é a de que eu o matei.
Eu o matei.
6
de setembro
Vou sumir e tentar esquecer de mim
já que esquecer Bernard é impossível.
Vou para perto do mar, evocar
lembranças felizes de quando meu amigo era feliz e eu ainda sonhava com a
possibilidade de tê-lo comigo.
7
de setembro
Estou sozinha. O vento frio corta
minha pele. O que vejo é apenas a imensidão lá embaixo e a água do mar que
quebra em alguns rochedos negros. Meu amigo, meu amor, o fantasma de Bernard que
tem me acompanhado desde o fatídico dia que eu vi seu corpo morrer... Já não
mais está aqui.
E eu sinto falta.
Estou louca: Enlouqueci como
Bernard, e também já não posso mais suportar tanta covardia e solidão.
A imensidão me chama e o único som
que consigo ouvir é o do vento batendo em meu rosto.
Cortei uma rosa do jardim e estou
disposta a finalmente cumprir o último desejo de Bernard. Quanto à mim, espero
que seja minha covardia jamais seja esquecida e que ninguém cometa os mesmos
erros que eu.
Estou indo, meu amor.
Comentários